A recente alteração legislativa que criminaliza a realização de tatuagens e a colocação de piercings em cães e gatos com fins estéticos representa um marco significativo no ordenamento jurídico brasileiro. Ao adicionar o § 1º-B ao artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, o legislador não apenas tipifica expressamente condutas que já poderiam ser enquadradas como maus-tratos, mas também reforça uma tendência global de reconhecimento da senciência animal e da necessidade de proteção jurídica autônoma. Esta análise visa aprofundar os aspectos jurídico-penais dessa inovação, explorando suas implicações para a dogmática penal, a interpretação constitucional e a atuação dos operadores do Direito, sempre sob a perspectiva de um direito penal ambiental em constante evolução.
O artigo 32 da Lei nº 9.605/1998, em seu caput, estabelece um tipo penal de natureza aberta, ao prever a criminalização de condutas como “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. A característica de “tipo penal aberto” significa que a descrição da conduta típica não é exaustiva, demandando um juízo de valor ou um complemento normativo para sua completa definição. Essa abertura permite que a jurisprudência e a doutrina, ao longo do tempo, incluam diversas práticas no rol de maus-tratos, adaptando a norma à evolução social e científica.
Historicamente, essa flexibilidade foi fundamental para abarcar situações não expressamente previstas, como o abandono, a privação de alimento ou abrigo, agressões físicas ou psicológicas, e o uso de animais em rituais ou lutas. No entanto, essa mesma abertura, por vezes, gerava insegurança jurídica e dificuldades probatórias, especialmente em condutas que, embora eticamente reprováveis, não possuíam um consenso claro sobre sua subsunção ao tipo penal.
A inclusão do § 1º-B, que criminaliza expressamente a tatuagem e a colocação de piercings em cães e gatos com fins estéticos, resolve essa lacuna. Embora tais práticas já pudessem ser interpretadas como maus-tratos sob o conceito de “abuso” ou de “maus-tratos”, a nova redação traz maior segurança jurídica. A tipificação específica elimina dúvidas quanto à caracterização da conduta como crime, facilitando a atuação das autoridades policiais e do Ministério Público na fase de investigação e persecução penal. Além disso, reforça a clareza da mensagem legislativa à sociedade, desestimulando tais práticas ao torná-las inequivocamente ilícitas e passíveis de sanção penal.
Fundamentação Constitucional: Senciência e Dignidade Animal
A criminalização da tatuagem e piercing em animais com fins estéticos encontra respaldo no artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal de 1988. Este dispositivo estabelece que “Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Tradicionalmente, a proteção animal sob a égide do artigo 225 da CF era interpretada sob uma ótica antropocêntrica, ou seja, a proteção da fauna era vista como um meio para garantir o equilíbrio ecológico em benefício do ser humano. Contudo, a evolução da doutrina e da jurisprudência tem promovido uma reinterpretação desse preceito, avançando para uma perspectiva biocêntrica, que reconhece o valor intrínseco da vida animal e a sua senciência.
A senciência, que é a capacidade de sentir dor, prazer, medo e outras emoções, tem sido amplamente reconhecida pela ciência e, cada vez mais, incorporada ao mundo jurídico. O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), na sua Resolução n. 877/2008, por exemplo, há muito tempo repudia procedimentos invasivos de cunho puramente estético em animais, fundamentando-se no bem-estar animal e na prevenção da dor e do sofrimento desnecessários. Essa diretriz profissional corrobora a interpretação de que a crueldade, vedada constitucionalmente, abrange não apenas a integridade física, mas também o bem-estar psicológico e emocional dos animais.
Resolução CFMV n. 877/2008
CAPÍTULO IV
CIRURGIAS ESTÉTICAS MUTILANTES EM PEQUENOS ANIMAIS
Art. 7º Ficam proibidas as cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie, sendo permitidas apenas as cirurgias que atendam as indicações clínicas.
§1º São considerados procedimentos proibidos na prática médico-veterinária: conchectomia e cordectomia em cães e, onicectomia em felinos.
§2º A caudectomia é considerada um procedimento cirúrgico não recomendável na prática médico-veterinária.
Nesse contexto, a vedação constitucional de “práticas que submetam os animais a crueldade” transcende a mera proteção da função ecológica da fauna. Ela impõe um dever de abstenção de condutas que causem sofrimento injustificado aos animais, independentemente de sua utilidade para o ser humano ou para o ecossistema. A tatuagem e o piercing estéticos em animais, por sua natureza invasiva, dolorosa e desnecessária, enquadram-se no conceito de crueldade, justificando a intervenção penal.
A crescente discussão sobre a “dignidade animal”, embora não seja um conceito idêntico à dignidade da pessoa humana não deixa de refletir a valorização dos animais como seres merecedores de respeito e consideração moral. A nova lei, ao criminalizar a instrumentalização do …
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