Disparos contra veículos em fuga: limites legais e jurisprudenciais

Rodrigo Foureaux O disparo de arma de fogo por profissionais de segurança pública contra veículos em fuga é um tema de alta sensibilidade operacional, jurídica e ética. Embora muitos profissionais associem a fuga à culpa presumida ou ao risco iminente, a legislação brasileira e a jurisprudência têm adotado posicionamento restritivo quanto à legalidade dessas ações. A legislação brasileira é clara ao disciplinar as hipóteses em que o disparo de arma de fogo é admitido nos casos de fuga. A Lei nº 13.060, de 22 de dezembro de 2014, que trata do uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, estabelece expressamente os limites da atuação armada em situações de fuga. Art. 2º Os órgãos de segurança pública deverão priorizar a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos seguintes princípios: Parágrafo único. Não é legítimo o uso de arma de fogo: I – contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; e II – contra veículo que desrespeite bloqueio […]

Por quais motivos uma pessoa pode correr ao avistar uma viatura policial?

O Superior Tribunal de Justiça afirmou que é possível cogitar quatro motivos principais para que alguém empreenda fuga ao avistar uma guarnição policial: a) estar praticando crime naquele exato momento (flagrante delito); b) estar na posse de objeto que constitua corpo de delito (o que nem sempre representa uma situação flagrancial); c) estar em situação de descumprimento de alguma medida judicial (por exemplo, medida cautelar de recolhimento noturno, prisão domiciliar, mandado de prisão em aberto etc.) ou cometendo irregularidade administrativa (v. g. dirigir sem habilitação); d) ter medo de sofrer pessoalmente algum abuso por parte da polícia ou receio de ficar próximo a eventual tiroteio e ser atingido por bala perdida, sobretudo nas comunidades periféricas habitadas por grupos vulneráveis e marginalizados, em que a violência policial e as intensas trocas de tiros entre policiais e criminosos são dados presentes da realidade. O STJ fixou entendimento de que fugir correndo repentinamente ao avistar uma guarnição policial não configura, por si só, flagrante delito, nem algo próximo disso para justificar que se excepcione a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar. Trata-se, todavia, de conduta intensa e marcante que consiste em fato objetivo – não meramente subjetivo ou intuitivo -, visível, controlável pelo Judiciário […]

Legitimidade do Trabalho Policial e sua Relação com Abordagem a Pessoas

A cooperação dos cidadãos com a polícia pode ter um impacto importante na eficácia da polícia no desempenho das suas funções. Sem cooperação, os suspeitos desaparecem, as pistas desfazem-se, as detenções despencam e os casos não se materializam (Bolger; Walters, 2019). Um dos impactos da não cooperação dos cidadãos com a polícia é a subnotificação de crimes, que alimenta um ciclo vicioso com tendência ao aumento das taxas criminais ao longo do tempo. Segundo La Vigne, Fontaine e Dwivedi (2017), nas comunidades em que os cidadãos tendem a não denunciar crimes, a taxa de criminalidade é quase sempre elevada. Já Ranapurwala, Berg e Casteel (2016) descrevem que, enquanto os cidadãos que denunciam experiências de vitimização à polícia têm menos probabilidades de serem vitimizados no futuro do que aqueles que não denunciam experiências de vitimização à polícia. Quando as experiências de vitimização não são denunciadas à polícia, os criminosos tornam-se encorajados e a sua inclinação para acreditar que estão acima da lei torna-se ainda mais forte. Encontrar formas de incentivar o público a cooperar com a polícia e outros agentes responsáveis pela aplicação da lei é, portanto, de importância fundamental quando se trata de melhorar a eficácia da polícia. Outro impacto […]

Aspectos psicológicos envolvidos na abordagem

Mesmo os casos de interações com a polícia em que nada acontece (do ponto de vista legal) podem ter uma forte influência sobre as pessoas envolvidas quando a interação é conduzida de uma forma que a carrega com carga emocional. Mesmo que uma abordagem não resulte numa detenção, encarceramento ou uso de força, ainda assim poderá ter um forte impacto nas opiniões que a pessoa tem sobre a polícia e sobre as leis que ela aplica (Fagan; Tyler; Meares, 2016). Quando a polícia comete um erro, priva ilegalmente um cidadão da sua liberdade física, bem como da sua dignidade, arriscando, em alguns casos, uma condenação injusta se o erro não for detectado nem corrigido (Logan, 2012). A partir daí os danos de uma condenação criminal pode aumentar, incluindo custos econômicos, sociais e psicológicos (Pager, 2007). O erro também pode causar danos adicionais à medida que a dinâmica situacional se desenrola através de uma série de interações sociais e simbólicas nas quais os fins são muitas vezes contingentes a decisões tomadas durante transações intermediárias que ocorrem ao longo de um encontro (Ogletree, 2012). Em outras palavras, as pessoas têm grande potencial em ficar irritadas por serem alvo de uma intervenção policial, […]

Tirocínio como conhecimento do Ofício Policial

Ratcliffe (2023) destaca que, ao contrário da intuição, a experiência pessoal é adquirida ao longo do tempo se, diante de uma situação, refletirmos sobre os resultados das ações tomadas em circunstâncias semelhantes. Em outras palavras, pensamos em como agimos em eventos semelhantes e ajustamos nosso comportamento atual para alcançar um resultado melhor.   Bittner (1990) escreveu que “a substância do profissional policial deve resultar principalmente da prática policial e experiência policial”.   Quando visto como uma profissão/ofício e não uma ciência, o profissionalismo no policiamento decorre da experiência e não do conhecimento da pesquisa.   Um ofício é uma habilidade, uma ocupação ou profissão que requer habilidade ou conhecimento especial (Bayley; Bittner, 1984). Chamar algo de ofício em vez de ciência é aceitar a importância do conhecimento experiencial, bem como do conhecimento formal. O ofício é aprendido no trabalho. Um ofício envolve transmitir crenças e práticas de geração em geração. Em contraste com uma ciência, um ofício não tem um caminho melhor. Ao contrário de uma arte, ela tem utilidade. O ofício é aprendido com um “mestre”. Muito desse conhecimento é tácito, ou seja, não foi sistematizado. É complexo e, muitas vezes, é “secreto”. Desta forma, os praticantes do ofício […]

O caso icônico americano de análise de legalidade quanto à abordagem e busca pessoal: Terry v. Ohio (1968)

No direito estadunidense, a principal norma para análise de validade quanto aos atos praticados pelo Estado, os quais são restritivos da liberdade e privacidade dos indivíduos é a Quarta Emenda à Constituição dos EUA, integrante da Bill of Rights de 1791:   O direito das pessoas de estarem seguras em suas pessoas, casas, papéis e pertences, contra buscas e apreensões injustificadas, não será violado, e nenhum mandado será emitido, a não ser por causa provável, apoiada por juramento ou afirmação, e descrevendo particularmente o local a ser revistado e as pessoas ou coisas a serem apreendidas (Estados Unidos, 1791).   A emenda constitucional prevê, em suma, a proteção do indivíduo em face de buscas, detenções e apreensões não justificadas, e determina como regra geral que as buscas e apreensões contra um indivíduo, tanto sobre sua pessoa (corpo), como sobre seu patrimônio, requerem mandado prévio, fundamentado em causa provável. Em 1968, a Suprema Corte norte-americana julgou recurso de um caso de John W. Terry contra o estado de Ohio que se tornou icônico e definidor das circunstâncias que delimitam a legalidade para realização de uma abordagem e busca pessoal (stok-and-frisk). O caso que ensejou o processo foi o seguinte:   Em […]