Atuação policial junto a comunidades tradicionais
Antônio Hot Pereira de Faria 1 INTRODUÇÃO A atuação estatal em territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais demanda uma abordagem jurídica e ética sensível à pluralidade normativa que caracteriza essas coletividades. Quando o poder público intervém — seja por meio de políticas de segurança, levantamento de dados, cadastramento populacional ou identificação de lideranças —, não lida apenas com indivíduos isolados, mas com sujeitos coletivos de direito, cujas identidades são forjadas por cosmologias, espiritualidades e estruturas normativas próprias. Nessas situações, a imposição unilateral de normas do direito estatal, sem diálogo e sem o devido consentimento livre, prévio e informado (CPLI), pode representar não apenas uma infração administrativa, mas uma violação à própria dignidade coletiva e ao direito à autodeterminação. A Teoria dos Princípios, formulada por Robert Alexy (2015), oferece um marco racional para lidar com colisões entre normas constitucionais, a partir da técnica da ponderação entre princípios como dignidade, legalidade, segurança pública e diversidade cultural. Contudo, essa ponderação exige uma ampliação hermenêutica nos contextos multiculturais, em que diferentes sistemas normativos — consuetudinários e estatais — coexistem com eficácia social própria. O direito, nestes casos, precisa ser interpretado à luz do pluralismo jurídico, que reconhece a legitimidade de normas derivadas […]
O impacto do trabalho policial na família
Rodrigo Foureaux Resumo O trabalho policial está entre as ocupações mais exigentes do ponto de vista físico, psicológico e social. Este texto tem como objetivo examinar criticamente os principais impactos psicossociais que a atividade policial acarreta na vida familiar dos profissionais de segurança pública. Foram analisados estudos científicos extraídos de diversas bases de dados, com critérios de inclusão específicos e recorte temporal definido, totalizando 12 artigos analisados. Os achados revelam que a natureza imprevisível, os altos níveis de estresse e a exposição constante a situações de risco impactam negativamente os relacionamentos conjugais, as práticas parentais e a saúde mental dos próprios policiais e de seus familiares. A discussão temática mostrou que os conflitos conjugais, a ansiedade familiar, os efeitos do estresse ocupacional no lar e a dificuldade de conciliar trabalho e vida pessoal são recorrentes. Além disso, observou-se que o apoio organizacional e familiar, quando presente, desempenha papel atenuante. Conclui-se que políticas institucionais voltadas à saúde ocupacional e familiar são essenciais para promover o bem-estar e a funcionalidade familiar dos policiais. Introdução O exercício da atividade policial é caracterizado por uma confluência de fatores estressores que incluem exposição recorrente a situações de risco, exigências operacionais imprevisíveis e permanente vigilância situacional. […]
Flexibilização do Coque nas Forças Policiais: Um Debate entre Saúde Ocupacional, Segurança e Cultura Institucional
Rodrigo Foureaux 1. Introdução A obrigatoriedade do uso do coque como padrão de penteado para policiais femininas sempre foi tratada como um elemento de padronização estética, disciplina e imagem institucional nas instituições militares estaduais. No entanto, esse mesmo elemento, aparentemente inofensivo, tem se tornado objeto de debates sobre saúde ocupacional, segurança e reconhecimento das particularidades de gênero dentro da estrutura policial. Recentemente, a flexibilização dessa exigência em alguns estados, como Santa Catarina, provocou reações diversas entre policiais, gestores e a sociedade em geral. Em um ambiente normalmente regido por hierarquia e tradição, abrir espaço para a revisão de normas aparentemente simples — como um penteado — pode representar um divisor de águas na forma como tratamos a dignidade e o bem-estar dos profissionais da linha de frente. A discussão ganhou grande repercussão pública, com um vídeo específico sobre o tema publicado no instagram @c.j.pol em 12 de maio de 2025, que ultrapassou 351 mil visualizações, atingindo 247 mil contas e gerando 28.767 interações, das quais 1.141 foram comentários — a base da análise deste texto. Um dado especialmente relevante é que 97,9% dessas interações partiram de pessoas que não seguiam o perfil original, o que demonstra a amplitude do […]
Intervenções com pessoas em surto de saúde mental
1. INTRODUÇÃO As interações entre a polícia e indivíduos com problemas de saúde mental e deficiências intelectuais/de desenvolvimento são demandas recorrentes que, apesar de não constituírem, a priori, questões de segurança pública, acabaram por desaguar nos órgãos policiais para intervenções imediatas. Estima-se que entre 6% e 10% de todas as interações entre a polícia e o público nos Estados Unidos envolvam indivíduos com transtornos mentais graves (serious mental illnesses – SMI), segundo levantamento de Livingston (2016). Aproximadamente 29% das pessoas com SMI nos Estados Unidos tiveram o envolvimento policial como parte do caminho para o cuidado (Livingston, 2016). Além disso, estudos apontam que ao menos um em cada quatro indivíduos mortos por policiais nos EUA tinha um transtorno mental grave diagnosticado (Fuller et al., 2015; Lowrey et al., 2015). Nos Estados Unidos, há um elevado número de prisões de pessoas com doenças mentais, o que gera sua superrepresentação no sistema carcerário: enquanto compõem entre 5% e 7% da população geral, representam 17% da população carcerária (Compton; Watson, 2020). Desse total, 72% apresentam comorbidades com transtornos relacionados ao uso de substâncias (Ditton, 1999; Steadman et al., 2009; Teplin; Abram, 1996). Relatórios indicam que dois milhões dos treze milhões de entradas anuais em […]
Controle externo da atividade policial no Brasil: Aspectos legais e desafios
1 Introdução O controle externo da atividade policial é um instituto constitucionalmente instituído com o objetivo de assegurar o cumprimento rigoroso das funções de segurança pública dentro dos parâmetros legais, éticos e de respeito aos direitos fundamentais. Sua existência emerge como resposta à histórica preocupação com eventuais abusos cometidos pelas instituições policiais, cuja atuação é constantemente submetida ao escrutínio público e institucional. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988, ao atribuir essa função ao Ministério Público, buscou dotar o Estado de um mecanismo capaz de conferir legitimidade e credibilidade às forças policiais, ao mesmo tempo que buscou prevenir e reprimir abusos e desvios de conduta que possam comprometer a própria essência do Estado Democrático de Direito. Todavia, mesmo com previsões constitucionais e legais claras, persistem desafios significativos na efetivação plena e eficiente desse controle. A atuação policial, pela sua própria natureza, frequentemente ocorre em cenários de tensão social, risco iminente e conflito potencial, características que impõem dificuldades práticas à efetivação plena e eficaz da fiscalização externa pelo Ministério Público. Não raro, surgem críticas tanto quanto à eficácia quanto à real capacidade operacional deste órgão em fiscalizar adequadamente instituições policiais que atuam de forma descentralizada e frequentemente submetidas a contextos complexos […]
Ethos Guerreiro vs Ethos Guardião nas polícias e seus impactos
1 INTRODUÇÃO A dualidade entre os ethos “guerreiro” e “guardião” nas polícias configura um tema central na discussão sobre a identidade e o papel das forças de segurança em sociedades democráticas. Enquanto o ethos guerreiro privilegia uma abordagem combativa e focada na repressão ao crime, o ethos guardião enfatiza a conexão com a comunidade, a resolução pacífica de conflitos e o respeito aos direitos humanos. Essa dicotomia não apenas molda a cultura organizacional das polícias, mas também impacta diretamente as percepções e relações entre agentes de segurança e cidadãos. A mentalidade guerreira, enraizada em práticas militarizadas e em uma visão adversarial do público, muitas vezes contribui para o isolamento social dos policiais e a escalada de conflitos. Por outro lado, o ethos guardião, ao promover o engajamento comunitário, busca consolidar a confiança e a colaboração entre as partes. Contudo, a coexistência desses dois modelos dentro das forças policiais reflete a complexidade de uma cultura ocupacional influenciada por fatores históricos, sociais e institucionais. O treinamento policial e as políticas públicas exercem papel determinante na perpetuação ou transformação dessas mentalidades. Instituições que reforçam táticas agressivas e incentivam posturas combativas tendem a dificultar a adoção de práticas mais inclusivas. Alternativamente, reformas no currículo […]
Técnicas de desescalonamento do uso de força a partir da Teoria de Posicionamento e equipes de intervenção em crise
1 INTRODUÇÃO O debate sobre o uso excessivo da força por policiais é uma questão central nos Estados Unidos, destacando a necessidade de estratégias mais eficazes para prevenção e mitigação desses incidentes. A morte de um adolescente desarmado em Ferguson, Missouri, em 2014, exemplifica como eventos específicos podem impulsionar mudanças sistêmicas e demandar inovações nas práticas policiais (Police Executive Police Forum, 2015). Entre as medidas propostas, destaca-se o uso de câmeras corporais, um avanço que, embora relevante para a documentação de ocorrências, não aborda diretamente a prevenção do uso inadequado da força. Além disso, iniciativas como a responsabilização criminal de agentes são, em essência, reativas, focadas em punir atos já consumados (Police Executive Police Forum, 2015). Portanto, pesquisas que investiguem metodologias preventivas, como treinamentos e abordagens fundamentadas em teorias psicológicas e sociais, são indispensáveis. Neste contexto, o treinamento policial surge como um fator crítico. Estudos mostram que novos recrutas recebem treinamento significativamente desequilibrado, com um número médio de 129 horas dedicado a técnicas de uso da força contra apenas 16 horas para práticas de desescalada (Police Executive Police Forum, 2015). A implicação é clara: os policiais são condicionados a reagir instintivamente com força, muitas vezes negligenciando alternativas menos coercitivas. 2 […]
Atuação policial no conflito de direitos entre o Direito Formal e os Direitos oriundos de usos e costumes de comunidades tradicionais
1 Introdução Na interpretação jurídica, a Teoria dos Princípios formulada por Robert Alexy (2008) trata do embate entre normas de igual relevância, no qual uma delas deve ser preterida em relação à outra, levando em conta o peso relativo de cada uma e as circunstâncias concretas do caso. O método da ponderação é empregado para solucionar essas situações de conflito, sendo conhecido como a “lei de colisão” ou “sopesamento de princípios”. Esse mecanismo possibilita a harmonização entre princípios divergentes sem que um deles seja completamente suprimido do ordenamento jurídico. A proporcionalidade, nesse contexto, é aplicada em três etapas: definição do grau de limitação imposto a um princípio, determinação da relevância da concretização do outro princípio e, por fim, avaliação sobre se a importância de assegurar o segundo princípio justifica a restrição do primeiro. Os indivíduos exigem que seus direitos humanos sejam respeitados, no entanto, em determinadas circunstâncias, surgem conflitos entre diferentes pessoas ou grupos. Quando tais situações ocorrem, é comum que a Polícia seja acionada para intervir e buscar uma solução. Entretanto, qualquer que seja a decisão adotada pela Polícia, inevitavelmente uma das partes envolvidas poderá entender que seus direitos foram violados. Diante desse cenário de tensões, torna-se fundamental que […]